Por trás de muitos discursos de obediência, perdão e submissão dentro de comunidades religiosas, há formas silenciosas de violência doméstica. Mulheres em contextos de fé mais rígidos frequentemente enfrentam agressões físicas e psicológicas justificadas por interpretações distorcidas de passagens sagradas. O que deveria servir como conforto espiritual se torna, para muitas, uma prisão emocional. “É comum encontrar casos em que versículos e valores religiosos são usados para legitimar a submissão forçada, o silêncio e a permanência em situações de violência”, afirma o advogado criminalista Davi Gebara. Segundo ele, a liberdade de crença é um direito constitucional, mas não pode servir como escudo para violações de direitos humanos. “Nenhuma fé ou doutrina está acima da integridade física e emocional de uma mulher. Se a crença é usada para justificar o sofrimento contínuo, temos um desvio claro e grave.”
No Brasil, uma pesquisa conduzida pela teóloga Valéria Vilhena revelou que 40% das mulheres que relataram agressões físicas ou verbais dos maridos se declaravam evangélicas. Muitas relataram ter sido desencorajadas a denunciar por pastores e líderes espirituais, que sugeriram que “Deus mudaria o coração do agressor” ou que “a mulher deveria orar mais e ter paciência”. O estudo mostra que, em várias comunidades, a violência doméstica é combatida com espiritualização, e o perdão é exigido como dever moral. Em vez de apoio, muitas recebem culpa. “As fraquezas do marido são entendidas como ataques do demônio. Denunciar o agressor é visto por essas mulheres como uma traição não apenas ao parceiro, mas à igreja e a Deus”, afirma Vilhena.
O fenômeno não é exclusivo do Brasil. Em diversos países, especialmente onde prevalecem interpretações conservadoras de textos religiosos, o divórcio por violência doméstica é desestimulado ou até proibido dentro das normas internas das comunidades. Em casos documentados nos Estados Unidos, por exemplo, mulheres que buscaram separação legal após anos de abusos físicos ouviram de pastores que “a submissão é um mandamento divino” e que “sofrer pelo casamento é parte da missão da esposa”. Um dos casos mais notórios envolveu um pastor batista que aconselhou uma fiel a permanecer com o marido agressor e “orar por ele”. Dias depois, ela retornou à igreja com hematomas visíveis. O pastor comemorou o fato de o marido finalmente ter ido ao culto. A repercussão levou a protestos e pedidos de responsabilização.
Davi Gebara alerta que esse tipo de manipulação representa um duplo risco: psicológico e jurídico. “Quando a religião é usada para convencer a mulher de que ela deve permanecer ao lado do agressor, temos uma violação não apenas da dignidade, mas também do direito à proteção e à segurança garantido por lei. Nenhuma doutrina pode se sobrepor ao Código Penal. A liberdade religiosa não pode ser usada para encobrir crimes.” Ele destaca que, em casos assim, líderes religiosos que desestimulam denúncias ou orientam mulheres a retornar para lares violentos podem ser responsabilizados por omissão ou até por favorecimento ao agressor, dependendo das circunstâncias.
A Organização Mundial da Saúde estima que uma em cada três mulheres no mundo sofrerá algum tipo de violência física ou sexual ao longo da vida. Embora as estatísticas não estejam diretamente ligadas à religiosidade, estudos indicam que comunidades de fé também enfrentam essas mesmas taxas — e, em alguns casos, podem agravá-las quando adotam estruturas patriarcais rígidas. Segundo Geneece Goertzen, pesquisadora e sobrevivente de abuso religioso, a cultura do silêncio é uma das principais barreiras. “Em muitas igrejas, mesquitas e templos, falar sobre violência doméstica ainda é um tabu. Há uma tendência de proteger a reputação da instituição em vez da vítima”, afirma.
Apesar do cenário preocupante, há sinais de mudança. Coletivos de mulheres cristãs e organizações inter-religiosas têm criado espaços seguros para acolhimento, orientação jurídica e denúncia. Líderes mais progressistas também têm se posicionado publicamente contra o uso da fé como justificativa para a violência, enfatizando que proteger a mulher é um dever moral e espiritual. A legislação brasileira, por sua vez, não deixa margem para dúvidas: a Lei Maria da Penha é clara ao definir que toda mulher tem direito a viver livre de violência, independentemente de religião, cultura ou crença.
Para Davi Gebara, é preciso que o Judiciário, os órgãos de proteção e as próprias instituições religiosas trabalhem juntos para romper o ciclo de violência. “Religião alguma pode justificar dor. Se a fé não acolhe, não protege e não liberta, então não é fé. É opressão”, conclui. Em uma sociedade laica, onde o Estado deve garantir os direitos individuais acima de qualquer doutrina, é essencial reconhecer que espiritualidade e violência não combinam. E que, quando combinadas, deixam marcas que vão além do corpo. Ferem também a alma.