Problema já superado em muitos países, a febre reumática não tratada adequadamente ainda acomete o Brasil, gerando casos de valvopatias. Em função disso, diferentemente do que ocorre em países desenvolvidos, nos quais a doença atinge majoritariamente idosos, devido à degeneração das válvulas cardíacas, aqui no nosso país, os jovens, em idade ativa, são os mais afetados. O tema faz parte da agenda das ações do Instituto Lado a Lado pela Vida (LAL) sobre conscientização da saúde cardiovascular e foi debatido no workshop internacional “Valvopatias e o impacto no futuro das novas gerações” no II Fórum Brasil, promovido LAL, no dia 29 de julho. Dados da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) apontam que a febre reumática é responsável por 70% dos casos de doenças valvares no país e um terço das cirurgias cardiovasculares realizadas no Brasil se deve às sequelas da cardiopatia reumática (DRC).
O debate deu visibilidade a um tema pouco conhecido em comparação às demais doenças cardiovasculares. De acordo com a cardiologista Ariane Macedo, membro do comitê científico do Instituto Lado a Lado pela Vida e que atua no Laboratório de Valvopatias da Santa Casa de São Paulo, o tratamento adequado à febre reumática pode reduzir os índices locais da doença. “Ela é causada por uma infecção bacteriana na garganta. Quando mal curada, acarreta problemas valvares, que se manifestarão principalmente em meninas na faixa etária dos 5 a 15 anos”, explica. A cardiologista complementa que é comum que o indivíduo acometido seja submetido a diversas cirurgias de correção e troca das válvulas ao longo da vida.
O cirurgião cardiovascular e coordenador dos programas de Insuficiência Cardíaca e Transplante Cardíaco do Instituto do Coração (InCor), Fábio Gaiotto, em uma de suas falas no evento, destacou o quanto a prevenção por meio da atenção básica pode promover melhor qualidade de vida aos pacientes. “Falta investimento na atenção primária, principalmente no programa de Estratégia de Saúde da Família (ESF), por exemplo. Com os investimentos ajustados, nós reduziríamos o número de cirurgias. Seria um ganho, porque quando o jovem portador da valvopatia reumática é encaminhado para a cirurgia, ele já está em um quadro avançado. As cirurgias interferem diretamente no seu estilo vida. Dependendo do procedimento realizado, como a implantação de uma válvula mecânica, por exemplo, o uso de medicamentos passa a ser necessário e seu desempenho nas atividades diárias pode ser comprometido”, explica o cirurgião.
Por ser uma doença que tem tratamento, a atenção ao diagnóstico precoce é fator importante para a redução de casos. “O uso correto do antibiótico adequado já reduz severamente os riscos. O acesso aos profissionais de saúde e tratamento são os primeiros passos para controlar a doença”, afirma Ariane, que também é conselheira da Sociedade Interamericana de Cardiologia.
O presidente da Pacientes do Corazón (PACO), do México, Carlos Castro, destacou a importância da educação dos profissionais como determinante para o oferecimento da assistência correta. “A instrução de clínicos gerais para a identificação precoce das valvopatias é fundamental, uma vez que a maioria das pessoas recorrem a eles em um primeiro momento. Com a formação necessária, eles conseguem dar um atendimento acertado, encaminhar o paciente e reduzir complicações futuras”, argumentou. O investimento na saúde foi apontado pelo palestrante como determinante no processo de controle dos casos.
“No México há uma parcela da população sem acesso a médicos e o orçamento público vem diminuindo cada vez mais, o que interfere diretamente na promoção da saúde, principalmente para aqueles com pouca renda. Uma das nossas ações é pressionar o poder público por um orçamento adequado que atenda às necessidades dos pacientes e disponibilize uma medicina ao alcance de todos”, explicou Castro.
Já Will Woan, presidente da Heart Valve Voice, do Reino Unido, discorreu sobre a estratégia utilizada pela instituição na conscientização das valvopatias em idosos, a mais comum em seu país, voltada aos portadores da doença e também ao círculo social no qual eles estão inseridos. “Nós priorizamos a conscientização da população por meio de campanhas veiculadas nas TVs, rádios, jornais, entre tantos outros meios. E temos como objetivo alcançar os idosos que apresentam os sintomas, mas não foram diagnosticados e, também, os familiares e cuidadores que convivem com eles. Fazemos um alerta para que observem seus comportamentos para identificar sintomas como cansaço, perda de fôlego e perda de resistência física nas atividades diárias”, explicou Woan, que acredita no trabalho integrado como forma de alcançar o diagnóstico precoce.
Um desafio para a detecção de valvopatias na terceira idade é a associação dos sintomas como consequência do envelhecimento, segundo Woan. “Nossa dificuldade em alcançar um grupo mais amplo está no problema dos sintomas mascarados. O idoso tende a não procurar o médico porque encara com normalidade o cansaço e a perda de fôlego por causa da idade avançada. É um trabalho árduo da Heart Voice em difundir essa consciência”.
O envelhecimento da população brasileira foi um ponto levantado por José Armando Mangione, membro do Comitê Científico do LAL e presidente da Sociedade Latino Americana de Cardiologia Intervencionista (SOLACI), como um fator que interfere diretamente no controle das doenças valvares. “Atualmente o país tem por volta de 20 milhões de idosos e a expectativa é de que esse número dobre em 20 anos. Isso significa que o índice de valvopatias no país vai acompanhar o crescimento exponencial. É uma realidade que deixará de ser de países desenvolvidos e, em breve, será nossa também. Devemos nos preparar para este cenário”, pontuou.
No final do workshop, a presidente do LAL, Marlene Oliveira, anunciou o lançamento do “Documento Guia sobre Valvopatias no Brasil”. Com o objetivo de apresentar o cenário da doença no país, o instituto produzirá um documento informativo apresentando dados e abordando a jornada do paciente: do diagnóstico até o tratamento. A previsão é que ele seja divulgado no primeiro trimestre de 2022. “Fala-se muito do infarto do miocárdio, do ataque cardíaco como uns problemas cardiovasculares graves, mas é preciso expor as demais doenças do coração para que seja dada atenção integral às principais causas de morte no país e para que os sistemas de saúde atuem de forma abrangente, e não pontual”, enfatizou.
Incorporação no SUS de tratamento alternativo em idosos
A estenose aórtica, um tipo de valvopatia, recebeu destaque no workshop. Ela atinge a população acima dos 60 anos e possui maior incidência em países europeus (que são aqueles com maior taxa de idosos). A doença consiste na calcificação da válvula com o avançar da idade, a qual deve ser substituída.
A cirurgia tradicional para troca da válvula é realizada com incisão no tórax dos pacientes. Tal procedimento, considerado invasivo muitas vezes não pode ser realizado por oferecer risco de morte do paciente. A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) publicou em seu site, no dia 20 de julho de 2021, relatório de recomendação para a incorporação do procedimento conhecido como TAVI (implante valvular aórtico percutâneo) pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para pacientes inoperáveis.
O procedimento, já bastante utilizado em inúmeros países como Reino Unido, Canadá, Alemanha, Bélgica, por exemplo, é menos invasivo e consiste em uma pequena incisão na região da virilha, por onde o cardiologista intervencionista introduz um cateter que faz a substituição da válvula. No seu relatório, a Conitec citou três vezes os argumentos do Instituto Lado a Lado pela Vida (LAL) encaminhados na consulta pública sobre o tema, que contribuíram para sua recomendação final de incorporar o procedimento para tratamento da estenose aórtica grave em pacientes inoperáveis. O procedimento já estava aprovado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e havia sido incluído no rol de cobertura dos planos de saúde no início deste ano.
O fato de o cantor Mick Jagger ter passado pelo procedimento em 2019 e 15 dias depois já estar normalmente de volta aos palcos tem sido um reforço para a segurança do TAVI e o ganho que ele proporciona à qualidade de vida do paciente. “A tecnologia possibilita substituir a válvula de forma não invasiva e evita, nesses casos, a cirurgia de abertura do tórax, o que exige internação demorada e oferece mais riscos ao paciente, além de proporcionar uma recuperação mais rápida, impactando a qualidade de vida”, argumenta Marlene Oliveira, presidente do LAL.