Autora: Zizi Martins
O recente julgamento da condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal (STF) marca um momento decisivo para a demonstração da incompreensão do real papel do Judiciário no sistema de freios e contrapesos do Estado de Direito brasileiro. Neste contexto, o voto do ministro Luiz Fux, marcado por múltiplas semelhanças com a doutrina originalista de Antonin Scalia, levanta reflexão profunda sobre os limites judiciais, enquanto o neoconstitucionalismo brasileiro aparece como raiz da crise e insegurança jurídica que ameaça a própria sustentação republicana.
Antonin Scalia, referência fundamental do originalismo americano, pregava que o Judiciário deve ater-se ao significado público original do texto constitucional, recusando interpretações expansivas ou evolutivas que deleguem à corte o papel de legislador ou agente político. Para Scalia, o controle rigoroso do ativismo judicial é crucial para preservar a separação dos poderes, a previsibilidade jurídica e a estabilidade institucional, pilares do Estado de Direito.
Essa doutrina condena incisivamente a 8 subjetiva do poder judicial para além da aplicação do texto e da competência estabelecida, recusando interpretações com base em valores pessoais ou cenários políticos contemporâneos. Scalia defendia que os juízes têm o dever de limitar-se à Constituição como está escrita, afastando-se do ativismo disfarçado de interpretação.
O voto do ministro Luiz Fux na absolvição de Bolsonaro apresenta fortes inspirações na filosofia originalista de Scalia. Fux inicia seu voto sustentando a incompetência do STF para julgar o ex-presidente, afirmando que, conforme o texto constitucional, a corte não tem foro privilegiado para réus que já não ocupam cargos públicos. Essa defesa rigorosa do texto constitucional e da competência jurisdicional define um limite claro à atuação judicial.
Fux rejeita ainda a tipificação da organização criminosa armada e da tentativa de golpe com base em evidências consideradas frágeis, adotando assim uma interpretação objetiva, pautada em provas concretas, e rejeitando conclusões conjecturais. Essa abordagem objetiva, literal e restrita ao texto reflete diretamente os princípios do originalismo que valorizam a segurança jurídica e o impedimento do ativismo judicial.
Além disso, Fux enfatiza que o papel do Judiciário não é político, mas jurídico, reafirmando que o tribunal deve decidir com base na constitucionalidade e legalidade, não em julgamentos políticos ou ideológicos. Esse rigor no respeito às competências evita a deslegitimação institucional e contribui para a estabilidade do Estado de Direito.
A identificação do voto de Fux com o originalismo de Scalia é múltipla: a ênfase na literalidade do texto, o respeito aos limites jurisdicionais explícitos na Constituição, a rejeição da “construção” judicial com base em valores externos ao texto e a defesa da separação de poderes como garantia institucional são todas marcas típicas da doutrina originalista. A rejeição do ativismo e da mutação constitucional implícita, tão criticados por Scalia, aparece nítida no rigor e na moderação do voto de Fux.
Em posição quase que oposta ao originalismo de Scalia, está o neoconstitucionalismo, que tem raízes ideológicas profundas que remetem a influências neomarxistas. Essa corrente não é um simples desenvolvimento jurídico; ela incorpora um projeto político de transformação social que busca, por meio da expansão do papel do Judiciário, implementar uma agenda “progressista” e intervencionista no Estado. Criado a partir de teorias pós-positivistas e crítico da lógica formalista, o neoconstitucionalismo adota uma hermenêutica que valoriza a dimensão discursiva e a função social do direito, o que acaba por justificar o ativismo judicial como meio legítimo de “correção” das falhas dos poderes eleitos.
Enxerga-se claramente a matriz neomarxista ao enfatizar a luta de classes, a necessidade de mudança estrutural e a justiça social como fundamento para a intervenção judicial. No Brasil, esse panorama alimenta a chamada “juristocracia”, que implica a usurpação de funções legislativas e executivas pelo Judiciário, com graves prejuízos à governabilidade e à segurança jurídica.
Todos os quatro votos contrários ao de Fux no julgamento são manifestações claras da influência desse neoconstitucionalismo, cujos reflexos radicalizam a jurisdição e desconsideram a rigidez constitucional.
O voto do relator Alexandre de Moraes no julgamento do núcleo 1 da pretensa tentativa de golpe de Estado apresenta diversos exemplos evidentes do uso do neoconstitucionalismo para legislar e interpretar fora do texto legal e constitucional. Moraes ampliou o conceito de organização criminosa para incluir condutas políticas e manifestações públicas que não estão previstas na definição legal da lei penal, criando uma narrativa que associa a simples coordenação e manifestação à formação de um grupo criminoso armado. Ele estruturou cronologicamente uma extensa sequência de fatos que, para ele, embasam a existência de um golpe, misturando investigações policiais, reportagens e depoimentos que carecem da objetividade exigida no direito penal. Essa interpretação amplia subjetivamente o conceito legal, desrespeitando a literalidade do texto constitucional e das normas penais.
Outro ponto é a ampliação indevida da competência do STF para julgar réus que já não exerciam cargos públicos, contrariando a previsão expressa sobre foro privilegiado na Constituição. Moraes desconsiderou princípios penais clássicos, como o da consunção, e aplicou uma tipificação ampla e ampliativa da organização criminosa, incluindo fatos sem previsão legal clara. A prisão preventiva foi fundada em conceitos abstratos como “tentativa de abolição do Estado de Direito”, interpretada por Moraes de forma subjetiva e política, não técnica. Moraes também usou um entendimento que resultou na criminalização da opinião, conduzindo à criação de um “crime de opinião”, ao considerar mensagens e comunicações como evidências de intenções criminosas, ignorando que o direito penal deve recair sobre ações concretas e não sobre pensamentos ou posicionamentos políticos. Essa criminalização da expressão revela o distanciamento do voto do texto constitucional, reforçando a pressão políticoideológica que orienta o uso do neoconstitucionalismo para ampliar indevidamente o papel do Judiciário na vida política e social.
Esse uso extensivo da jurisdição para valer interpretações subjetivas e políticas, mais do que jurídicas, faz do voto de Moraes uma expressão paradigmática do neoconstitucionalismo, que flexibiliza o texto e subverte princípios tradicionais do direito para alcançar objetivos que transcendem a esfera estritamente jurídica.
O ministro Flávio Dino reforçou essa linha ao articular no voto a necessidade da atuação proativa do Judiciário para conter práticas que ameaçam o Estado de Direito, interpretando o papel do tribunal como um agente político na defesa de interesses sociais, o que amplifica a ingerência judicial e despreza as fronteiras entre os poderes.
A ministra Cármen Lúcia, ao sustentar a condenação, evidenciou a aplicação do discurso neoconstitucionalista ao interpretar situações complexas por uma ótica teleológica, convocando uma interpretação que se distancia do texto formal e legitima a intervenção judicial em nome de supostos valores coletivos e sociais.
Por fim, o ministro Cristiano Zanin acompanhou o entendimento de seus pares, enfatizando um ativismo judicial voltado à proteção de direitos coletivos e à manutenção da ordem pública, ainda que para tanto seja necessário afastar o texto constitucional em sua literalidade, comportamento típico da ingerência neoconstitucionalista que subverte princípios constitucionais básicos.
Em clara oposição a esses votos, o ministro Luiz Fux assume papel inestimável na defesa da segurança jurídica e do verdadeiro espírito constitucional, alinhando suas decisões ao originalismo de Scalia. Sua moderação, apego ao texto e rigor probatório trazem de volta ao Supremo a busca pela estabilidade institucional essencial para o funcionamento do Estado de Direito.
Ao insistir peremptoriamente no respeito à Constituição escrita, o voto de Fux fortalece a legitimidade institucional ao recusar interpretações subjetivas ou políticas mascaradas de sentenças judiciais. Este posicionamento representa a aplicação correta do papel judicial como guardião da legalidade, e não agente político, garantindo uma justiça que respeita os direitos individuais e as competências institucionais.
O equilíbrio institucional brasileiro e a preservação do Estado de Direito exigem magistrados que compreendam os limites do Judiciário e atuem fielmente à Constituição. O voto de Fux, inspirado no originalismo de Scalia, indica o caminho para assegurar que a Justiça permaneça um pilar de segurança jurídica e realização constitucional, rejeitando a perigosa deturpação que o neoconstitucionalismo neomarxista insiste em impor ao sistema republicano, conquista secular que esta corrente vem destruindo no Brasil e que praticamente enterrou no julgamento envolvendo Bolsonaro.
* Zizi Martins é ativista pela liberdade. Vice-presidente da ANED, membro fundadora e diretora da Lexum, Presidente do Instituto Solidez e membro do IBDR. Advogada com mestrado em direito público e especialização em Direito Religioso, Doutora em Educação, Pós-Doutora em Política, Comportamento e Mídia.
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