Um levantamento divulgado nesta sexta-feira (12/09) revela que os incentivos fiscais criados para ampliar o acesso à água e ao esgoto no Brasil têm sido usados, em grande parte, para outro fim: financiar a compra de novas concessões por empresas privadas do setor.
Segundo o estudo “O Sequestro do Financiamento do Saneamento Básico no Brasil”, elaborado pelo CICTAR(Centro Internacional de Transparência e Pesquisa sobre Tributação Corporativa) em parceria com o SINDAE-Bahia, R$ 21,1 bilhões do total de R$ 38,9 bilhões captados em debêntures incentivadas na última década foram destinados ao pagamento de outorgas em leilões de saneamento. Isso significa que R$ 5 de cada R$ 10 captados com o benefício tributário foram usados em benefício próprio das concessionárias, e não em obras de expansão ou melhoria de serviços.
Como funciona o mecanismo
As debêntures incentivadas foram criadas em 2011, pela Lei 12.431, para atrair investimentos a projetos de infraestrutura. Até 2024, ofereciam isenção de imposto de renda para investidores. Com a Lei 14.801/24, o benefício passou a ser das empresas, que agora podem abater do imposto devido os juros pagos nesses títulos de dívida.
Na prática, as concessionárias emitem os papéis no mercado, recebem o dinheiro dos investidores e, em vez de direcionarem os recursos a novas redes de água e esgoto, utilizam parte significativa para garantir vitórias em leilões, pagando outorgas bilionárias.
“O Brasil está estimulando, com recursos públicos, um modelo que prioriza a compra de concessões lucrativas em vez da universalização do saneamento. É um desvio claro de finalidade”, afirma Livi Gerbase, pesquisadora do Cictar.
O caso BRK Ambiental
O relatório traz como exemplo a BRK Ambiental, oitava maior empresa do setor, controlada pelo fundo canadense Brookfield. Desde 2017, a companhia dobrou seu faturamento e chegou a ser avaliada em R$ 10 bilhões, mas mantém alto endividamento.
Entre 2020 e 2024, a BRK emitiu R$ 18,3 bilhões em dívidas contra apenas R$ 7,8 bilhões em investimentos. A maior expansão ocorreu em 2020, com a compra da concessão da Região Metropolitana de Maceió por R$ 2 bilhões. Para isso, captou R$ 3,7 bilhões em debêntures – metade com incentivo fiscal. Nos três primeiros anos, porém, investiu apenas R$ 409 milhões, enquanto os gastos com juros ultrapassaram R$ 1 bilhão em 2024.
Os impactos aparecem nas tarifas e na qualidade do serviço: as contas subiram 71% entre 2017 e 2024, acima da inflação, enquanto a empresa acumulou denúncias de lançamento irregular de esgoto, descumprimento de contratos e interrupções no abastecimento, resultando em R$ 50 milhões em multas e duas CPIs em andamento.
Desigualdade no acesso
O estudo alerta que a distorção ajuda a explicar por que 40% da população brasileira ainda não tem acesso a coleta de esgoto, mesmo após mais de uma década de incentivos fiscais.
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Em 2023, 59,7% da população tinha acesso à rede de esgoto.
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Na zona rural, o índice cai para 5,6%.
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O abastecimento de água alcança 83,1% do território nacional.
Reações e recomendações
As entidades que apoiam o relatório – como a Confederação Nacional dos Urbanitários (CNU), a Internacional de Serviços Públicos (ISP) e o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas) – defendem que o governo federal revise a política de debêntures incentivadas.
Entre as recomendações estão:
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Proibir o uso dos títulos para pagamento ou refinanciamento de outorgas;
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Direcionar os recursos de bancos públicos como BNDES e Caixa Econômica Federal diretamente para obras de saneamento, com transparência e supervisão social;
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Cobrar maior responsabilidade fiscal e social das concessionárias, especialmente da BRK Ambiental, que paga pouco em impostos e dividendos em comparação a concorrentes.
“Estamos diante de um modelo que concentra ativos, valoriza empresas para revenda e gera endividamento crônico, sem garantir melhoria na qualidade nem expansão da rede. É preciso mudar essa lógica”, afirma Fernando Biron, do SINDAE-Bahia.
Meta do Marco do Saneamento em risco
A situação lança dúvidas sobre o cumprimento das metas do Novo Marco do Saneamento (Lei 14.026/2020), que prevê universalizar o acesso à água (99%) e ao esgoto (90%) até 2033. Desde a aprovação da lei, 31 leilões já foram realizados, em sua maioria vencidos pelas empresas que ofereceram maior valor de outorga – e não necessariamente maior capacidade de investir em obras.
Enquanto isso, milhões de brasileiros seguem sem acesso a serviços básicos, vivendo na contramão da promessa de que a entrada do setor privado traria mais eficiência e investimento.