Por unanimidade dos votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional o uso da tese da legítima defesa da honra em crimes de feminicídio ou de agressão contra mulheres. O julgamento do mérito da matéria, objeto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779, foi retomado na sessão plenária 1º de agosto, quando a Corte deu início às atividades do segundo semestre de 2023. o Partido Democrático Trabalhista (PDT) propôs a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 779 para que a tese fosse declarada incompatível com a constituição de 1988 e seu uso fosse considerado causa de nulidade do ato ou julgamento.
Princípios violados
A tese da “legítima defesa da honra” era utilizada em casos de feminicídio ou agressões contra mulher para justificar o comportamento do acusado. O argumento retórico utilizado pela defesa do prepetrador, ao fazer o uso dessa tese, atribuia à própria vítima a responsabilidade pela sua morte ou agressões sofridas, quando sua conduta supostamente ferisse a honra do agressor. O exemplo clássico é o caso da socialite Ângela Diniz, assassinada, por seu companheiro Doca Street, o qual recebeu um pena mínima de dois anos de detenção ao réu com direit ao “sursis”.
No julgamento, foram pontuados alguns pontos relevantes que são essenciais destacar:
A legítima defesa como excludente de ilicitude depende de certos requisitos: a presença de uma injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de terceiro, a qual é repelida moderadamente pelos meios necessários. Nesse sentido, a ‘legítima defesa da honra’, não preencheria os requisitos legais, ante a desproporcionalidade da conduta consistente em matar alguém em defesa da honra, nos casos de traição ou equivalente. Ou seja, o agente não estaria se defendendo de uma agressão injusta (animus defendendi) mas atacando uma mulher “de forma desproporcional, covarde e criminosa”, segundo o ministro.
A crueldade de tratamento a mulheres no texto legal possui profundas raízes históricas e culturais. O Código Filipino (1603) autorizava o homem a matar a mulher adúltera. Depois, Código de 1830 retirou essa disposição mas trouxe a tipicação penal para a mulher que cometesse adúlterio.
A tese da legítima defesa da honra coloca no mesmo patamar a vida da mulher e a honra masculina, de modo que para “limpar” a mancha da traição seria justificada a supressão da vida da mulher.
Assim, essa tese encerra um discursos misógino e de naturaliza a objetificação e coisificação feminina como uma extensão da honra masculina sendo, por consequência, incompatível com a Constituição de 88, a qual promove a pessoa humana como um fim em si mesma.
Com isso, o Plenário seguiu o relator, ministro Dias Toffoli, pela procedência integral do pedido apresentado pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) na ação, firmando o entendimento de que o uso da tese, nessas situações, contraria os princípios constitucionais da dignidade humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.
Isso porque, sendo a vida o bem jurídico tutelado de maior importância na Constituição, não pode haver um salvo conduto para a prática de feminicídio e afins.
Como efeito prático, a partir desse julgamento, fica obstada a defesa, a acusação, a autoridade policial e o juízo de utiliar, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.
Mas e a Plenitude de Defesa no Tribunal do Júri?
Inobstante a inevitável repulsa à premissa asquerosa sobre a qual se funda a tese da legítima defesa, é preciso registrar algumas considerações sob a ótica técnica e garantista.
Em primeiro lugar, as estatícas apontam que a tese da legítima defesa da honra na prática já não vem sendo acolhida, devido ao pensamento civilizatório atual.
A Constituição Federal garante o direito a defesa ampla aos acusados no processo criminal e a plenitude de defesa perante o Tribunal do Júri. Além da defesa técnica é assegurada ainda, no Tribunal do Júri, a autodefesa do Réu.
Na autodefesa o réu pode sustentar tudo – inclusive absurdos – que passarão pelo crivo dos jurados, os quais decidirão conforme suas íntimas convicções e sem precisar motivar essa decisão.
Assim, privar o réu de alegar qualquer tese, por mais repulsiva que seja, é violar a plenitude de defesa.
E numa situação hipotética em que uma mulher vítima de violência doméstica, sofrendo constantes humilhações, agressões, traições e tendo sua honra violada, mediante divulgação de fotos íntimas pelo companheiro, se num ato extremo tirasse a vida do companheiro, também lhe seria proibido invocar a tese de legítima defesa da honra.
Ora, a interpretação do STF visa ao combate à violência contra a mulher, porém o resultado prático nesse caso será totalmente contrário daquele almejado.
Sob outro prisma, é necessário ressaltar que não é papel da legislação descontruir o pensamento machista de uma sociedade. O veredito dos jurados reflete o pensamento do povo e da sua época. Alterações legislativas e jurisprudenciais já se provaram ineficazes quando se trata de problemas culturais complexos e socialmente arraigados. Dificilmente, algum agressor fará um cálculo prévio para analisar se pegará maior ou menor pena pelo fato do feminício ter se tornado crime hediondo, ou pelo fato de agora não mais serpossível se defender com a tese da legítima defesa da honra.
Por fim, a luta para se promover a mudança de toda uma cultura profunda e historicamente violenta contra as mulheres não deve transigir com a retirada de garantias do indivíduo num processo criminal.
O processo penal não é instrumento de punição. É, em verdade, assecuratório de garantias dos indivíduos frente ao poder punitivo do Estado. E qualquer mitigação ao direito de defesa é temerária.